CRÔNICAS: RUBEM ALVES
CARTAS DE AMOR
Leio e releio o poema de Álvaro
de Campos. Oscilo. Não sei se devo acreditar ou duvidar. Se acredito, duvido.
Duvido porque acredito. Pois foi ele mesmo quem disse – ou melhor, o seu outro,
o Fernando Pessoa – que ele era um fingidor. "Todas as cartas de amor são
ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas..."
Tenho no meu escritório a
reprodução de uma das telas mais delicadas que conheço, Mulher lendo uma carta,
de Johannes Vermeer (1632-1675). Uma mulher, de pé, lê uma carta. O seu rosto
está iluminado pela luz da janela. Seus olhos leem o que está escrito naquela
folha de papel que suas mãos seguram, a boca ligeiramente entreaberta, quase
num sorriso. De tão absorta, ela nem se dá conta da cadeira, ao seu lado. Lê de
pé. Penso ser capaz de reconstituir os momentos que antecedem este que o pintor
fixou. Pancadas na porta interromperam as rotinas domésticas que a ocupavam.
Ela vai abrir e lá estava o carteiro, com uma carta na mão. Pela simples
leitura do seu nome, no envelope, ela identifica o remetente. Ela toma a carta
e, com este gesto, toca uma mão muito distante. Para isto se escrevem as cartas
de amor. Não para dar notícias, não para contar nada, não para repetir as
coisas por demais sabidas, mas para que mãos separadas se toquem, ao tocarem a
mesma folha de papel. Barthes cita estas palavras de Goethe:
Por que me vejo novamente
compelido a escrever? Não é preciso, querida, fazer pergunta tão evidente,
porque, na verdade, nada tenho para te dizer. Entretanto tuas mãos queridas
receberão este papel...
Volto ao Álvaro de Campos. Será
esta a razão do ridículo das cartas de amor – o descompasso entre o que elas
dizem e aquilo que elas realmente querem fazer? Pois o propósito explícito de
uma carta é dar notícias, e é por isto que elas são feitas de palavras. Mas o
que elas realmente desejam realizar está sempre antes e depois da palavra
escrita: elas querem realizar aquilo que a separação proíbe: o abraço. Quem
quer que tente entender uma carta de amor pela análise da escritura estará
sempre fora de lugar, pois o que ela contém é o que não está ali, o que está
ausente. Qualquer carta de amor, não importa o que se encontre nela escrito, só
fala do desejo, a dor da ausência, a nostalgia pelo reencontro.
Aquela carta fez tudo parar. A
mulher fecha a porta e caminha pela casa sem nada ver, buscando uma coisa
apenas, a luz, o lugar onde as palavras ficarão luminosas. Que lhe importa a
cadeira? Esqueceu-se de que está grávida. Seus olhos caminham pelas palavras
que saíram das mesmas mãos que a abraçaram. Seu corpo está suspenso naquele
momento mágico de carinho impossível que aquele pequeno pedaço de papel abriu
no tempo do seu cotidiano.
Uma carta de amor é um papel que
liga duas solidões. A mulher está só. Se há outras pessoas na casa, ela as
deixou. Bem pode ser que as coisas que estão nela escritas não sejam nenhum
segredo, que possam ser contadas a todos. Mas, para que a carta seja de amor,
ela tem de ser lida em solidão. Como se o amante estivesse dizendo: "Escrevo
para que você fique sozinha...". É este ato de leitura solitária que
estabelece a cumplicidade. Pois foi da solidão que a carta nasceu. A carta de
amor é o objeto que o amante faz para tornar suportável o seu abandono.
Olho para o céu. Vejo a Alfa
Centauro. Os astrônomos me dizem que a estrela que agora vejo é a estrela que
foi, há dois anos. Pois foi este o tempo que sua luz levou para chegar até os
meus olhos. O que eu vejo é o que não mais existe. E será inútil que eu me
pergunte: "Como será ela agora? Existirá ainda?". Respostas a estas
perguntas eu só vou conseguir daqui a dois anos, quando a sua luz chegar até
mim. A sua luz está sempre atrasada. Vejo sempre aquilo que já foi... Nisto as
cartas se parecem com as estrelas. A carta que a mulher tem nas mãos, que marca
o seu momento de solidão, pertence a um momento que não existe mais. Ela nada
diz sobre o presente do amante distante. Daí a sua dor. O amante que escreve
alonga os seus braços para um momento que ainda não existe. A amante que lê
alonga os seus braços para um momento que não mais existe. A carta de amor é um
abraçar do vazio...
"Ainda bem que o telefone
existe", retrucarão os namorados modernos, que não mais têm de viver o
amor no espaço das ausências. Engano. Um telefonema não é uma carta falada.
Pois lhe falta o essencial: o silêncio da solidão, a calma da caneta pousada
sobre a mesa que espera e escolhe pensamentos e palavras. O telefone põe a
solidão a perder. Num telefonema a gente nunca diz aquilo que se diria numa
carta. Por exemplo: "Eu ia andando pela rua quando, de repente, vi um
ipê-rosa florido que me fez lembrar aquela vez...". Ou: "Relendo os
poemas de Neruda encontrei este que, imagino, você gostará de ler...".
A diferença entre a carta e o
telefone é simples. O telefone é impositivo. A conversa tem de acontecer
naquele momento. Falta-lhe o ingrediente essencial da palavra que é dita sem
esperar resposta. E, uma vez terminado, os dois amantes estão de mãos vazias.
Mas a mulher tem nas mãos uma
carta. A carta é um objeto. Se não tivesse podido recolher-se à sua solidão,
ela poderia tê-la guardado no bolso, na deliciosa espera do momento oportuno. O
telefonema não pode esperar. A carta é paciente. Guarda as suas palavras. E,
depois de lida, poderá ser relida. Ou simplesmente acariciada. Uma carta contra
o rosto – poderá haver coisa mais terna? Uma carta é mais que uma mensagem.
Mesmo antes de ser lida, ainda dentro do envelope fechado, tem a qualidade de
um sacramento: presença sensível de uma felicidade invisível...
Estes pensamentos me vieram
depois de ler as cartas de um jovem cientista, Albert Einstein, à sua amada,
Mileva Maric'. Foram elas que me fizeram ir ao poema do Álvaro de Campos:
ridículas. Todas as cartas de amor são ridículas. Acho que os editores pensaram
o mesmo. E como desculpa para o seu gesto indiscreto de tornar público o
ridículo que era segredo de dois amantes, escreveram uma longa e erudita
introdução que transformou as ridículas cartas de amor em documentos da
história da ciência. Valem porque, misturadas ao ridículo de que os amantes se
alimentam, se encontram pistas que dão aos historiadores as chaves para a
compreensão das "fontes do desenvolvimento emocional e intelectual dos
correspondentes". Não sabendo o que fazer com o amor (ridículo),
colocaram-nas na arqueologia da ciência.
Foi então que o quadro de Vermeer
me fez ver a cena que as cartas escondem. E a mulher com a carta na mão e uma
criança na barriga? Ela bem que poderia ser Mileva, grávida de uma filha
ilegítima, que foi dada para adoção, e sobre quem nada se sabe. A criança foi
dada. Mas as cartas foram guardadas. E que razões poderia ter uma pessoa para
guardar cartas ridículas? O seu rosto absorto e os lábios entreabertos nos dão
a resposta: para aqueles que amam as ridículas cartas de amor são sempre
sublimes.
Volto ao poema do Álvaro de
Campos e encontro lá o que faltava para fechar a cena:
"Afinal, só as
criaturas que nunca escreveram cartas de amor são ridículas".
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