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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

AS VIÚVAS: Rubem Alves

CRÔNICAS: RUBEM ALVES

AS VIÚVAS
Com gesto de mão ela me tirou da poltrona onde eu estava assentado e me chamou para junto da janela da frente da casa. Os ramos e a folhagem de uma trepadeira cobriam o espaço aberto da janela, fazendo dela um lugar ideal para quem quer observar sem ser visto. E ela apontou para três modestas casas, do outro lado da rua.

“São as casas das viúvas”, ela explicou. Não fazia muito tempo a morte passara por lá, levando os três maridos. Agora elas estavam sós, as três velhinhas, nas casas vazias. Os vizinhos se compadeciam e imaginavam que elas deviam se sentir como aquelas mulheres sicilianas que, mortos os maridos, se cobrem com sinistras roupas negras, pelo resto de seus dias, para que todo mundo soubesse que sua vida havia acabado. Se continuavam a viver era porque a religião não lhes permitia pôr um fim à própria vida. Mas bem que gostariam que a morte chegasse logo...

Eu ficava aqui na janela, olhando para as casas fechadas, imaginando aquelas pobres criaturas lá dentro, sozinhas, tendo apenas a tristeza e a saudade como companhia... 
Foi então que comecei a notar sinais de que coisas estranhas estavam acontecendo naquelas três casas e naquelas três velhinhas. Aconteceu depois de passado aquele período em que, por medo do morto, todo mundo se sente na obrigação de fazer cara de tristeza e só de falar sobre os últimos momentos do falecido. Aconteceu que depois a vida foi voltando ao seu normal e a conversa ficou leve de novo... De repente – até parece que foi coisa de magia, pois aconteceu ao mesmo tempo -, as três velhinhas, que todo mundo imaginava mortas, começaram a florescer. E ficaram bonitas como nunca tinham sido quando seus maridos eram vivos!

Uma delas, que só usava birote, cortou e pintou o cabelo, e até mesmo começou a usar batonzinho. Com certeza voltou a conversar com um velho namorado, esquecido, abandonado, pendurado, calado, o espelho, que com a morte do marido reaprendeu a falar: “Não é mais preciso que você seja feia. Ele já se foi. Você está livre para ser bonita como sempre foi...”

A segunda sempre varria a calçada de chinelo, meia soquete e roupão. Começou a aparecer na rua com uns vestidos de cores vivas que nunca usara antes. De onde os teria tirado? De algum baú onde permaneceram trancados com bolas de naftalinas, à espera do grande dia? Ou teriam existidos só no baú dos sonhos proibidos, que a presença do marido não deixava realizar, e que agora voavam livres como borboletas que se libertam de seus casulos?

A terceira, de voz grave e sem sorrisos, falava por monossílabos, e poucos eram o que se lembravam de já ter visto um sorriso em sua boca. Pois, para surpresa de toda vizinhança, ela começou a cantar... Cantou velhas canções de amor, de outros tempos – certamente dos tempos em que ela se sentia como namorada...

A ressurreição das velhinhas me fez sorrir de alegria. Mas logo me dei conta do trágico da vida humana: foi preciso que a morte fizesse o seu trabalho para que a vida brotasse de novo. Lembrei-me então, de um terrível verso de Álvares de Campos: “Talvez seja pior para os outros existires que morreres... Talvez peses mais durando que deixando de durar...”.

É claro que os inocentes maridos tudo isso ignoravam e nada sabiam da vida que jazia sepultada sob o peso da sua presença. Se lhes fossem dado revistar os seus lugares, com certeza teriam dificuldades em reconhecer aquelas com quem haviam vivido (ou morrido) todos os seus anos. De qualquer maneira, teria sido tarde demais... que pena que, ás vezes, a vida tenha de esperar tanto para renascer da sepultura! Que pena que, ás vezes, a vida só tenha uma chance depois que a morte faz o seu serviço...

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