CRÔNICAS: RUBEM ALVES
A REVELAÇÃO
A revelação acontece de repente,
sem avisar. É bem verdade que diariamente nos olhamos no espelho. Mas este
olhar diário é um ver sem perceber.
Por muitos anos sabia que meus
cabelos estavam caindo. Notava que minhas entradas iam ficando maiores. Mas
continuava a penteá-los normalmente, sem notar que o repartido se aproximava
cada vez mais da orelha. Eu era um caso de charmosos cabelos ralos. O espelho
me dizia, mas eu não acreditava. O momento da revelação aconteceu no Recife,
numa roda de repentistas. Um deles, pra ser gentil, improvisou-me um verso,
cantando-me como doutor careca. Desde este dia nunca mais me olhei no espelho
da mesma maneira. Percebi que era inútil continuar a lutar com o repartido. Mas
não liguei muito, consolando-me com a lembrança de que um dos maiores heróis da
mitologia, Ulisses (não o de Brasília, mas o da Odisseia...) era careca também.
E como Penélope o amava!
Por vezes a revelação terrível
nos chega sob a forma de um elogio. “Puxa, como você está conservado!” Ninguém
que me veja todo dia vai me dizer uma coisa destas. O espanto ante o meu
surpreendente estado de conservação só pode existir em alguém que não me via há
muito tempo, e que esperava me encontrar num estado mais avançado de
deterioração. Tais experiências de espanto e os elogios que as revelam ocorrem,
preferencialmente, nas reuniões de família, eventos raros que geralmente
acontecem nos enterros, e nos reencontros para a comemoração dos 25 anos de
formatura. Ao ouvir tal cumprimento, lembro-me sempre dos pepinos conservados
ao poder de fervura, vinagre e vácuo, e que, sem o auxílio destes artifícios,
há muito teriam apodrecido. É como se o elogio contivesse uma pergunta sobre o
truque físico-químico que tornou possível a farsa da minha aparência conservada.
Terá sido plástica ou dieta macrobiótica? Mas olhando ao redor compreendemos
que não podemos estar muito diferentes dos outros.
Mas nenhuma destas revelações
jamais me impressionou, até que levei aquele murro na cara. Isto aconteceu já
faz alguns anos. Eu estava leve e feliz em São Paulo. Tomei o metrô. O carro
estava lotado. O que não me incomodou nem um pouco. Encostei-me num daqueles
canos verticais e me entreguei a um dos meus passatempos favoritos: observar os
rostos das pessoas. Os rostos sugerem muitas histórias. E assim fui, de rosto
em rosto, até que os meus olhos se encontraram com outros olhos que me
observavam. Com certeza aquela pessoa tinha um passatempo semelhante ao meu:
estava tentando adivinhar as histórias que moravam em mim. Uma jovem, de
fisionomia tranquila e quase sorridente. Os seus olhos não se desviaram e por
um momento eu me senti feliz. Foi então que eu levei o murro. Seu quase sorriso
se transformou em sorriso, seus olhos olhando nos meus: levantou-se e
ofereceu-me o seu lugar.
O seu gesto não admitia
contestações. Sua terrível gentileza (ela não imaginava o quão terrível era a
sua gentileza!) me obrigava. Assentei-me. Não olhei mais para os seus olhos
para que ela não percebesse o meu espanto. Sabia que ela tinha gostado de mim.
Caso contrário não me teria olhado daquele jeito manso e não me teria oferecido
o lugar. Só que ela gostou de mim de um jeito inesperado, gostou de mim de um
jeito como eu não queria ser gostado. Vi, refletida nos seus olhos, uma imagem
minha que eu nunca vira. Talvez eu me parecesse com o seu pai (se vivo ou já
morto não posso saber). Ou talvez eu simplesmente representasse uma outra
idade, digna de uma deferência especial por parte dos mais novos. Afinal de
contas a velhice é a idade quando fica difícil sustentar o peso do corpo sobre
as pernas. Ela, jovem, podia ficar de pé; eu, velho, merecia estar assentado. A
sua terrível gentileza me havia colocado longe, muito longe dela, num mundo à
parte.
Teria sido muito mais fácil
enfrentar uma grosseria. Se não tivesse feito o gesto gentil eu teria ficado na
ilusão e carregaria comigo aquele momento de felicidade. Mas ela não era boa em
adivinhar os segredos da alma. Fez o gesto, levei o murro e a revelação
aconteceu. Vi-me, no espelho honesto do seus olhos, velho.
Mas não pensem que ir ficando
velho é ruim. Tem as suas vantagens. Um amigo meu me disse, em meio a risadas,
que estava preparando uma lista dos projetos que estava engavetando, em
decorrência da idade. Desistira de saltar da pedra da Gávea, em asa-delta. Não
pensava mais em descer os Alpes, esquiando. Não esperava encontrar o seu nome
entre os jogadores convocados para a seleção brasileira de voleibol. E,
sobretudo, já não fazia planos de affair amoroso com a Bruna Lombardi.
Ir ficando velho é desistir de
pegar as estrelas, muito altas, longe no futuro. Agora é o tempo da felicidade.
Cada novo dia é um milagre de graça, uma taça de prazer que deve ser bebida até
o fim, sem deixar para amanhã. Tempus fugit! Portanto, carpe diem - colha o dia
que se inicia como quem colhe uma flor que nunca mais se repetirá.
Vamos, não
chores!/ A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se
perdeu./ O primeiro amor passou,/ O segundo amor passou,/ O terceiro amor
passou./ Mas o coração continua./ Perdeste o melhor amigo,/ Não tentaste
qualquer viagem,/ Não possuis casa, navio ou terra./ Mas tens um cão...
Que imagem mais fiel de
felicidade poderia haver? Um cão é a ternura - você pode estar certo disto -
que nunca o abandonará. Metáfora do amor incondicional, do olhar que sempre
perdoa, da presença que está sempre ali. Perceber isto, eu acho, é ficar um
pouco mais sábio.
(Correio Popular, 10/09/1991)
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