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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A DOENÇA SEM CURA: Rubem Alves

CRÔNICAS: RUBEM ALVES

A DOENÇA SEM CURA

Preferiria ser acordado pelo canto de um galo. Porque cantos de galos são mais que cantos de galos. Cantos de galo são lugares onde moram universos inteiros, cenários e tempos que podem ser reconhecidos por aqueles que em algum tempo do passado moraram neles. Galos são arautos de um mundo. Seria bom ouvi-los de novo, pois então eu voltaria àqueles mundos onde vivi, e que agora moram infinitamente longe, no passado. Ao invés dos galos, são os bem-te-vis que me acordam. Da árvore do meu quintal eles anunciam o começo de um novo dia. E eu me admiro do imenso acordo que existe neles. Todos iguais. A começar dos uniformes. Como se fossem um partido onde não existem dissidências. Nenhum deseja ser diferente do que é. E a julgar pela convicta repetição do mesmo refrão, bem-te-vi, parece que todos têm as mesmas ideias. Nunca soube de algum que compusesse urna partitura diferente. Estão contentes. Por séculos, milênios, têm estado cantando a mesma coisa sem dela se cansar. Iguais por dentro e por fora. O que me faz supor que devam ser muito amigos uns dos outros, pois quem assim está de acordo só pode ser amigo.
  
A mesma admiração me causam os meus peixes. Por muitos meses eles têm vivido dentro do mesmo aquário. Se eu fosse um deles, creio que já há muito teria enlouquecido de claustrofobia. Pois o aquário é um mundo sem alternativas. Não há saídas. Sempre as mesmas coisas. No entanto (o que pode ser um equívoco de minha parte), eles parecem contentes. Contrariando a máxima sartriana de que o inferno é o outro, compartilham o mesmo espaço limitado sem que haja manifestações visíveis seja de batalhas seja de loucuras. Como os bem-te-vis, imagino também que, de tanto se verem, de tanto fazerem juntos as mesmas rotinas, devem ter se tornado amigos. Afinal de contas, todos eles partilham de um mesmo destino do qual não podem fugir.
  
Ontem achei um bem-te-vi morto no meu quintal. Estava coberto de formigas. Achei-o por acidente, pois nada no canto dos bem-te-vis me sugeria que eles tivessem sido golpeados pela morte. O bem-te-vi morto estava sozinho. Nenhum dos companheiros de mesmo uniforme e mesmo canto que expressasse tristeza. Como se ele não fizesse falta alguma. Como se ele nunca tivesse existido! Como se os seus companheiros de canto nunca o tivessem notado! Não havia tristeza no ar. Seu canto não fazia falta. Era apenas um bem-te-vi sem nome, como todos os outros. Qualquer outro seria o mesmo.

 A mesma coisa aconteceu no aquário. Um peixinho vermelho morreu. Ainda no dia anterior ele brincava com todos os outros peixes, nadava nos mesmos lugares, comia a mesma comida: Agora ele boiava inerte na superfície da água. Mas era como se nada tivesse acontecido. Os outros não sentiam a sua falta. Continuavam suas rotinas, indiferentes, sem demonstrar sofrimento algum.

Quando eu era menino, numa cidade do interior, quando alguém morria as igrejas faziam soar o repique fúnebre dos sinos. Não importava que fosse um desconhecido. Todo mundo ficava sabendo que em algum
lugar se chorava. Abria-se um espaço sagrado - pois o sagrado é isto, ali onde os homens choram juntos.

E fiquei a pensar em como somos diferentes: a felicidade dos animais e o choro dos homens. Nossos corpos são diferentes. O dia continuava belo para os bem-te-vis, o aquário continuava o mesmo para os peixinhos
- porque, sem que tenham isto aprendido com qualquer filósofo estoico - eles praticam naturalmente a ataraxia, a absoluta indiferença ante os golpes da vida. Não sentem. Ou melhor, só sentem aquilo que diretamente atinge a sua pele. Disto o budismo já nos adverte: que a nossa intranquilidade se deve ao nosso desejo. Elimine-se o desejo, e o sofrimento se reduzirá à dor que se sente no corpo.

Acontece que os deuses brincaram conosco e fizeram nosso corpo de uma outra substância. Em nossa carne mora o desejo. E desejo é isto: uma abertura para o universo inteiro, braços que abraçam desde as mais distantes estrelas até as mais ínfimas das criaturas. Pois Fernando Pessoa não tinha dó das estrelas? Não, não se tratava de figura retórica: ele sofria mesmo ao vê-las brilhando sem cessar, sem jamais descansar. Que vale dizer que as estrelas não sentem se, no corpo do poeta elas vivem como uma ferida pulsante? Um dos meus maiores amigos - amigo de todas as horas - é o seu João, pedreiro único, não existindo outro igual. Pois todos os dias, antes de começar o seu trabalho ele vai até a beirada da piscina e salva todos os bichinhos que ali haviam caído durante a noite - abelhas, marimbondos, besouros. Tolice, dirão. Pois não fazem falta. Morrerão de qualquer forma e nenhum dos seus companheiros está demonstrando qualquer sentimento face à tragédia daqueles que ainda ontem voavam com eles. Haverá outras abelhas, outros marimbondos, outros besouros... Certo. Isto vale para os bichos. Mas não vale para o seu João. Pois a sua carne, doente de afeto, sofre com o sofrimento dos pequenos animais.

Nosso corpo padece desta doença: o amor. Seu limite não é a pele. Ele contém o universo inteiro. Dizia Pablo Neruda: “Sou onívoro de sentimentos, de seres... Comeria toda a terra. Beberia todo o mar.” E o nosso sofrimento tem a ver justamente com isto: que gostaríamos, como uma mãe, de acolher, proteger, acalentar tudo o que existe. E é por isto que o destino de um pássaro perdido, de uma gaivota coberta de óleo, de uma árvore que geme consumida pela queimada, são tragédias internas, que fazem nosso corpo estremecer e chorar.
  
Pensei estas coisas depois de ter tentado aprender com os animais e com as plantas o segredo da sua tranquilidade. E concluí que esta é uma lição que nos está vedado aprender. Nunca poderemos participar da sua felicidade. Para sermos tranquilos como bichos e árvores, seria necessário que não tivéssemos coração. Estamos condenados ao sofrimento porque estamos condenados ao amor. Nas palavras de Wordsworth, “graças ao coração humano que nos faz viver,/ graças à sua ternura, alegrias e temores,/ a mais singela flor que o vento sopra/ faz-me pensar pensamentos profundos demais até para as lágrimas.”

Este é o preço que se paga por se ter dentro de um corpo tão pequeno um coração que abraça um universo tão grande.

  

(Correio Popular, 1991 ou 1992)

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