O TERROR DO ESPELHO
Ao que tudo indica,
comer um tijolo diariamente faz
mal à saúde. Mais que
dois maços de cigarro. No entanto, nunca encontrei médico
que combatesse este
pernicioso hábito.
Falam do perigo do torresmo, das
picanhas
engorduradas, das frituras, do açúcar, da vida sedentária, da
cerveja... Mas sobre
o perigo da ingestão de tijolos o silêncio é total.
Claro.Não é preciso.
Ninguém deseja comer tijolos.
A proibição aparece somente no
lugar onde mora o
desejo.
Os bombeiros só são chamados quando existe incêndio.
Está proibido
(inutilmente) cobiçar a mulher (e o marido) do próximo. Por que
se cobiça, é óbvio. E
também está comandado honrar pai e mãe, porque, imagino,
até os escritores
sagrados sabiam sobre Édipo, a sinistra mistura de ódio e desejos
proibidos que estão
misturados nas relações entre pais e filhos. E se está
proibido matar e
roubar é porque estes desejos estão bem vivos dentro da gente.
A proibição revela
sempre a presença do seu oposto, no lado do avesso,
escondido.
Vai isto como
introdução à continuação de nossas
meditações
demonológicas, já, iniciadas. Para absolver o diabo de uma acusação
injusta que sempre se
lhe faz, de que ele coloca desejos impuros na cabeça dos
pobres mortais. Nada
mais longe da verdade. Este poder não lhe foi concedido.
Não se pode colocar
um desejo no coração de ninguém. O que se pode fazer é
abrir as portas para que
os que já existem, trancados e silenciados, apareçam
na sala de visitas
onde os convivas, na companhia grave de clérigos e
princípios de moral,
falam sobre as coisas sobre que todos concordam e que não
fazem ninguém
enrubescer.
O diabo não joga porcaria dentro da fonte. Ele só
mexe o lodo que
repousava no fundo da água limpa. E aí começam a surgir sapos,
cobras, escorpiões -
e o rosto de Narciso vira coisa feia.
Mas não é só isto que
as artes do diabo fazem
aparecer. O fundo das
águas é lugar encantado, onde moram também lindas
criaturas, sereias,
iaras, borboletas de asas coloridas, gaivotas planantes no
ar, barcos à vela
entrando no mar, e até mesmo uma bela adormecida. Vivem lá,
submersas,
esquecidas... Mas quem as submergiu?
Nós mesmos.
Algumas, por serem feias demais.
Foram
escondidas por vergonha, como antigamente se escondiam os
urinóis nos
criados-mudos. Outras, por serem belas demais, ousadas demais,
livres demais, e
faltar-nos coragem para tomá-las como companheiras: por medo
de voar, por medo de
navegar, por medo de amar.
A beleza faz convites que
assustam...
Pois é só isto que o
diabo faz: acorda os desejos
que já moravam em
nós. Ele não bota o ovo. Só quebra o ovo que nós botamos,
para ver o que tem lá
dentro, se vida ou morte.
Sutil. Sutilíssimo.
Os textos sagrados dizem que a
serpente era a mais
sutil de todas as criaturas que Deus havia colocado no
jardim. Escorrega com
fala mansa até o lugar onde moram os nossos desejos.
Cheguei a pensar que
ela foi o primeiro psicanalista, pois ambos estão à
procura da mesma
coisa: os desejos esquecidos.
É aí que começa a
segunda parte da sua tarefa.
Primeiro soltou os
desejos. Depois, como sutil testador, nos coloca a questão:
“Você sabe que não é
possível ficar com todos. É preciso escolher. Se você
tivesse de rejeitar
todos, menos um, qual seria o escolhido? Onde está o seu
coração? Qual é a sua
verdade?” E começa a fazer como os oftalmologistas que
colocam uma lente e
depois outra no nosso olho e dizem: “Esta ou aquela?” O que
é que você ama mais?
Qual é a sua verdade? E nos vai despetalando, como quem
despetala uma flor,
para ver o que sobra, para ver o que somos. Pois somos o
que desejamos. A alma
é um espaço onde se ouvem as mais distintas melodias,
selvagens ritmos de
tambores, cósmicos corais gregorianos, bandas de rock
metaleiro, flautas
doces, canções de ninar, canções de amar, marchas militares
- tudo, ao mesmo
tempo. E o diabo nos faz decidir: “Esta ou aquela?” Afinal,
qual é a sua?
E chegamos então a
esta estranha conclusão:
o testador está a
serviço do amor. Vai nos obrigando a decidir. Na medida em que
decidimos, os
contornos de nosso rosto vão ficando cada vez mais claros,
refletidos na água da
fonte.
Álvaro de Campos tem
um verso que diz mais ou
menos assim:
“Sou o
intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos
outros fizeram de
mim”.
Intervalo, um espaço indefinido onde a minha verdade se
perdeu, enfeitiçada
pelo pedido dos outros. Os outros pedem que não sejamos o
que somos; que
sejamos só o que eles desejam. E ficamos sem rosto. Só máscaras.
Cebolas sem cerne, só
casca. O diabo nos coloca entre o martelo e a bigorna e
vai nos forçando a
tomar decisões. Pode ser que, ao final, tenhamos a
experiência suprema
de horror. Quando, diante do espelho, não vemos rosto
algum, apenas os
rostos de outros. Acho que é por isto que todo mundo fala mal
do diabo: porque,
além de ser ferreiro de martelo e bigorna, é também
especialista em
beleza, com espelho na mão.
E o reflexo no espelho dói mais que
o martelo na
bigorna...
(Correio Popular,
10/02/1991)
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