CRÔNICAS: RUBEM ALVES
O CIRCO
PEGOU FOGO!
Nossa fama é
a de um povo bem-humorado. Aqui tudo vira piada.
E não sem razões. Há palhaços muito engraçados no nosso circo.
Rimo-nos dos
poéticos marimbondos de fogo do presidente
Sarney, das suas fantasias de Cinderela, do seu voo de um milhão de dólares para
Paris - toda Cinderela deve ter uma carruagem de ouro - e do seu retorno
desenxabido, porque nenhum príncipe o tirou para dançar. Voltou sem ter perdido
nenhum sapatinho de cristal.
Rimo-nos da
coisa roxa do
Collor, que revelou a inspiração fálica do estilo presidencial, representada nos seus
gestos de Rambo. Rimo-nos mais ainda da sua falta de humor diante do ministro
Magri... Se tivesse sabido rir a tempo, teria evitado muitas dores de cabeça. Ah!
O ministro Magri, humorista nato! Haverá coisa mais engraçada que suas
insólitas tentativas de ampliar o dicionário, suas aventuras em Genebra que, acho,
ele confundiu com o Disneyworld, e sua
revolucionária tese biopsicológica sobre a identidade entre o cachorro e o homem, o
que nos deixa sem saber se é a inteligência do cachorro que é igual à do
ministro, ou se é a do ministro que é igual à do cachorro. Rimo-nos ainda das
bicicletas e guarda-chuvas do ministro da Saúde, que certamente lhe valerão uma
indicação para o prêmio Nobel de Medicina.
Rimo-nos do
inglês da primeira-dama. Não que ela tivesse
obrigação de saber inglês. Mas quem não sabe, a prudência manda calar. Se me
convidarem para dançar o tango, recusarei. Pois ela aceitou o convite para falar
inglês com a princesa Diana, estatelando-se no chão ao primeiro passo.
Rimo-nos das suas lágrimas - talvez por uma associação direta com as famosas
lágrimas de crocodilo - pois não se acredita muito que a família Malta leve as
lágrimas a sério.
Rimo-nos das
ridículas aventuras amorosas do ministro e
da ministra, transformadas em best seller - não
por valor literário ou por excitação erótica, mas porque temos uma fome
insaciável do grotesco.
E rimo-nos
do porta-voz do governo, que adota como norma não os
processos de inteligência, explicação e argumentação que a civilização
consagrou, mas algo que só pode ter sido aprendido numa academia de
boxe:
“Bateu, levou...” Reino de Avilã, república de Alagoas...
De Gaulle,
que não gostava de circo, reclamou e disse que
este não é um país sério. Todo mundo se abespinhou. Sem razão. Pois se rimos
tanto, é porque lhe damos razão. Parece que a sabedoria política que aprendemos
com a história pode se resumir no velho ditado que afirma que “rir é o melhor
remédio”.
De fato,
riso é remédio. Na clínica psicanalítica, quando um
paciente começa a ter a capacidade de rir, a gente pode ter certeza de que
alguma coisa boa está acontecendo na sua alma.
Mas não é
qualquer riso. Há um riso doentio, mórbido, que
é sinal de que todas as esperanças foram perdidas. Li em algum lugar - não
me lembro onde; acho que foi no Camus - uma referência ao humor patibular: o
condenado se ri do nó da forca, à sua frente. Não porque seja engraçado,
mas porque o riso aparece como a única saída diante do terror. O que me faz
lembrar uma velha piada. O professor levava os alunos numa visita educacional
pelo zoológico e explicava as características de cada bicho. “Esta é a hiena
listrada, cujo nome científico é Hyaena hyaena. Tem
relações sexuais uma vez por ano e alimenta-se de fezes. Notem que sua voz
soa como uma gargalhada”. Um menininho levantou a mão: “Professor, posso fazer
uma pergunta? Se ela tem relações sexuais uma vez por ano e come fezes, de
que é que ela está rindo?”
Seremos
parentes da hiena? Ou talvez tenhamos aprendido a
sabedoria dos norte-americanos que inventaram uma norma para enfrentar
situações dolorosas e inevitáveis? “Se você vai ser estuprado e nada pode fazer
para evitá-lo, relaxe e goze o mais que puder.”
E assim,
diante do nó da forca que o poder legítimo e
democrático nos preparou, pomo-nos a rir como se fosse engraçado. Mas não há
nada engraçado que mereça o riso. Nosso riso é doença. Não nos damos conta do
grau de humilhação a que estamos sendo submetidos pelos donos do poder. A
reação sadia diante deste circo só pode ser a de indignação. Se continuamos
a rir, é porque sofremos de um grave caso de humor patibular.
Marx pensava
que o circo iria acabar
quando os artistas, empregados e explorados fizessem uma revolução e
expulsassem os donos do espetáculo. Equivocou-se. Quem continua empregado ainda tem
algo a perder. Fazem cara feia, mas basta que o leão ruja para que se ponham a rir
patibularmente. São os que nada mais têm a perder que preservam a capacidade
de indignação. Coisa que Marcuse já percebera, muitos anos atrás, ao indicar o
lugar onde a indignação ainda vive: “Nos párias e marginalizados, nos desempregados
e naqueles que não podem ser empregados, e que sobrevivem por detrás da
base popular conservadora da sociedade.” E nós acrescentaríamos: nos aposentados,
sem emprego, sem poder, sem sindicato, sem muita vida pela frente. Eles nada
têm a perder. Passaram a vida inteira pagando por um bilhete de entrada, só
para se verem barrados pelos leões-de-chácara. Bem, se não podem entrar, não
se consolam dizendo que “rir é o melhor remédio”. Só lhes resta botar fogo
no circo. Escreve-se, assim, um novo final para um manifesto de transformação
da sociedade: “Desesperados do mundo inteiro: uni-vos!”
(Correio Popular, 1991 ou 1992)
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