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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

CRÔNICA: O CIRCO PEGOU FOGO!


CRÔNICAS: RUBEM ALVES

O CIRCO PEGOU FOGO!


Nossa fama é a de um povo bem-humorado. Aqui tudo vira piada. E não sem razões. Há palhaços muito engraçados no nosso circo.
  
Rimo-nos dos poéticos marimbondos de fogo do presidente Sarney, das suas fantasias de Cinderela, do seu voo de um milhão de dólares para Paris - toda Cinderela deve ter uma carruagem de ouro - e do seu retorno desenxabido, porque nenhum príncipe o tirou para dançar. Voltou sem ter perdido nenhum sapatinho de cristal.

 Rimo-nos da coisa roxa do Collor, que revelou a inspiração fálica do estilo presidencial, representada nos seus gestos de Rambo. Rimo-nos mais ainda da sua falta de humor diante do ministro Magri... Se tivesse sabido rir a tempo, teria evitado muitas dores de cabeça. Ah! O ministro Magri, humorista nato! Haverá coisa mais engraçada que suas insólitas tentativas de ampliar o dicionário, suas aventuras em Genebra que, acho, ele confundiu com o Disneyworld, e sua revolucionária tese biopsicológica sobre a identidade entre o cachorro e o homem, o que nos deixa sem saber se é a inteligência do cachorro que é igual à do ministro, ou se é a do ministro que é igual à do cachorro. Rimo-nos ainda das bicicletas e guarda-chuvas do ministro da Saúde, que certamente lhe valerão uma indicação para o prêmio Nobel de Medicina.
  
Rimo-nos do inglês da primeira-dama. Não que ela tivesse obrigação de saber inglês. Mas quem não sabe, a prudência manda calar. Se me convidarem para dançar o tango, recusarei. Pois ela aceitou o convite para falar inglês com a princesa Diana, estatelando-se no chão ao primeiro passo. Rimo-nos das suas lágrimas - talvez por uma associação direta com as famosas lágrimas de crocodilo - pois não se acredita muito que a família Malta leve as lágrimas a sério.

Rimo-nos das ridículas aventuras amorosas do ministro e da ministra, transformadas em best seller - não por valor literário ou por excitação erótica, mas porque temos uma fome insaciável do grotesco.
  
E rimo-nos do porta-voz do governo, que adota como norma não os processos de inteligência, explicação e argumentação que a civilização consagrou, mas algo que só pode ter sido aprendido numa academia de
boxe: “Bateu, levou...” Reino de Avilã, república de Alagoas...

De Gaulle, que não gostava de circo, reclamou e disse que este não é um país sério. Todo mundo se abespinhou. Sem razão. Pois se rimos tanto, é porque lhe damos razão. Parece que a sabedoria política que aprendemos com a história pode se resumir no velho ditado que afirma que “rir é o melhor remédio”.

De fato, riso é remédio. Na clínica psicanalítica, quando um paciente começa a ter a capacidade de rir, a gente pode ter certeza de que alguma coisa boa está acontecendo na sua alma.

Mas não é qualquer riso. Há um riso doentio, mórbido, que é sinal de que todas as esperanças foram perdidas. Li em algum lugar - não me lembro onde; acho que foi no Camus - uma referência ao humor patibular: o condenado se ri do nó da forca, à sua frente. Não porque seja engraçado, mas porque o riso aparece como a única saída diante do terror. O que me faz lembrar uma velha piada. O professor levava os alunos numa visita educacional pelo zoológico e explicava as características de cada bicho. “Esta é a hiena listrada, cujo nome científico é Hyaena hyaena. Tem relações sexuais uma vez por ano e alimenta-se de fezes. Notem que sua voz soa como uma gargalhada”. Um menininho levantou a mão: “Professor, posso fazer uma pergunta? Se ela tem relações sexuais uma vez por ano e come fezes, de que é que ela está rindo?”

Seremos parentes da hiena? Ou talvez tenhamos aprendido a sabedoria dos norte-americanos que inventaram uma norma para enfrentar situações dolorosas e inevitáveis? “Se você vai ser estuprado e nada pode fazer para evitá-lo, relaxe e goze o mais que puder.”
  
E assim, diante do nó da forca que o poder legítimo e democrático nos preparou, pomo-nos a rir como se fosse engraçado. Mas não há nada engraçado que mereça o riso. Nosso riso é doença. Não nos damos conta do grau de humilhação a que estamos sendo submetidos pelos donos do poder. A reação sadia diante deste circo só pode ser a de indignação. Se continuamos a rir, é porque sofremos de um grave caso de humor patibular.
  
Marx pensava que o circo iria acabar quando os artistas, empregados e explorados fizessem uma revolução e expulsassem os donos do espetáculo. Equivocou-se. Quem continua empregado ainda tem algo a perder. Fazem cara feia, mas basta que o leão ruja para que se ponham a rir patibularmente. São os que nada mais têm a perder que preservam a capacidade de indignação. Coisa que Marcuse já percebera, muitos anos atrás, ao indicar o lugar onde a indignação ainda vive: “Nos párias e marginalizados, nos desempregados e naqueles que não podem ser empregados, e que sobrevivem por detrás da base popular conservadora da sociedade.” E nós acrescentaríamos: nos aposentados, sem emprego, sem poder, sem sindicato, sem muita vida pela frente. Eles nada têm a perder. Passaram a vida inteira pagando por um bilhete de entrada, só para se verem barrados pelos leões-de-chácara. Bem, se não podem entrar, não se consolam dizendo que “rir é o melhor remédio”. Só lhes resta botar fogo no circo. Escreve-se, assim, um novo final para um manifesto de transformação da sociedade: “Desesperados do mundo inteiro: uni-vos!”

  

(Correio Popular, 1991 ou 1992)

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