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domingo, 9 de novembro de 2014

CrÔnIcAs: RuBeM AlVeS - "BoStA dE vAcA e PoLítIcA"


Bosta de Vaca e Política

Bastou um olhar para saber que ele havia aprontado alguma...
O rosto era de homem maduro, mas o sorriso matreiro dizia
que lá dentro morava um moleque que acaba de fazer uma
arte. Arte nos dois sentidos: de moleque e de artista, pois era
isto que ele era. Afinal, não existe muita diferença entre as
duas. Tanto o moleque quanto o artista fazem o que a
realidade proíbe. Fiquei quieto, à espera do que ele iria me
dizer.
"Fui contratado para fazer a decoração de um espaço. Saí
andando pelos rastros, olhando para cima, esperando que a
inspiração me viesse do alto. Mas quem olha para cima não
vê por que caminhos vão ós pés, e o resultado foi que pisei
numa bosta de vaca. Fiquei bravo, minha botina atolada
naquela pasta verde malcheirosa. Mas logo minha braveza
passou, pois meus olhos descobriram detalhes delicados
naquela obra que uma displicente contração ao final do tubo
digestivo de um ruminante produzira, sem que ele, para isto,
tivesse precisado de qualquer inspiração especial.
Procurei por perto e logo descobri obras semelhantes, já
secas pelo sol, o que permitia que delas se fizesse uma
inspeção mais detalhada, ao ponto mesmo da manipulação,
sem maiores perigos. E foi assim agachado, meditando
escatológica e contemplativamente sobre a estética da bosta
de vaca, que a inspiração me chegou... Numa fração de
segundo eu vi a obra de arte que eu iria produzir.
Catei um monte de bostas de vaca, as mais bonitas; levei-as
cuidadosamente para o meu ateliê (havia sempre o perigo de
que coisas tão frágeis pudessem se quebrar); pintei-as de
dourado com um splay; amarrei-as em fios de náilon
transparente; e assim, transformadas em móbiles, fiz com
que flutuassem no espaço...
As pessoas passavam, paravam, olhavam e se encantavam.
'Quanta leveza', comentavam admiradas. Daí, perguntavam-
me sobre a técnica empregada na fabricação daqueles discos
metálicos dourados. Mas, é claro, não disse nada; guardei o
segredo...
E caiu na risada, e eu também.
O riso é uma ejaculação repentina de alegria. E ele acontece
quando o inesperado aparece à nossa frente e nos passa uma
rasteira. Todo bom contador de piada sabe disso. É preciso
que o final seja um final que ninguém esperava. É o
inesperado gracioso que faz o corpo explodir no riso.
O riso revela um dos segredos da alma: a alma não gosta de
marchar. Na marcha tudo é igual, previsível, feito em parada
militar. A alma é bailarina que gosta mais é de dançar. Por
isso que, no seu estado original, (e isto é lição que a
psicanálise nos ensina) a alma é uma criança brincalhona. É
uma feiticeira que se deleita nas mais insólitas e proibidas
transformações. É poeta que escreve, e o mundo nunca é
mais o mesmo. É palhaço que se ri de que o mundo seja
assim tão parecido com um circo...
E era isto que era o meu amigo naquele instante: menino,
artista, dançarino, palhaço feiticeiro que põe bosta de vaca
no chapéu e, abracadabra, do chapéu sai o ouro flutuante.
Era este o segredo que os alquimistas queriam descobrir.
Mas, coitados, procuraram no lugar errado, em laboratórios
complicados, sem saber que esta magia qualquer um pode
fazer.
Faz tempo que isto aconteceu, mas de repente recordei
(palavra bonita esta, que quer dizer visitar de novo aquilo
que o coração guardou...). Pois quem me fez voltar ao
coração foram as crianças, os adolescentes, os moços,
caminhando e cantando e seguindo a canção, eu nem
imaginava que ainda iria ver isto de novo, roupa preta no
corpo, cor de luto, do tenebroso, do escabroso, fezes,
excrementos, quem terá sido aquele que os fez vestir assim,
mas os rostos diziam diferente, caras pintadas, alegria,
esperança, piada, riso...
Às vezes é preciso magia muito forte para fazer despertar a
Bela Adormecida! Às vezes é preciso muita bosta para que
alma insensível acorde do seu sono e diga: "Eu não sou isto!
Eu sou Beleza! Sou móbile dourado flutuante! Sou flor!"
Em nada semelhantes ao que fizeram os partidos com suas
bandeiras, seus dedos em riste, suas goelas rapadas, suas
palavras de ordem, suas ordens em palavras, as
demonstrações dos jovens foram puras explosões de vida,
risos, ejaculações de alegria ante o inesperado, o inesperado
sendo que a Beleza ainda existe a despeito dos excrementos
mal-cheirosos saídos do fim do tubo digestivo insaciável dos
poderosos.
Neruda disse, certa vez, que os poetas (estes maus políticos)
iniciaram a revolução da alegria. Pois eu acho que é isto que
os jovens estão anunciando: que do meio da merda (perdão
pela palavra! Mas nenhuma outra faria justiça à realidade!) é
possível que brote uma flor. Pois, como todo mundo sabe,
bosta de vaca, depois de bem curtida, é um bom esterco.

Façamos um jardim com os excrementos dos poderosos...

_O retorno e terno_

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